segunda-feira, 29 de março de 2010

SAIBA MAIS SOBRE AS SALAS MULTISSERIADAS
A seguir, apresentamos textos sobre a Educação do Campo retirados do Programa Salto Para o Futuro, série “Escolas rurais e classes multisseriadas”
Site http://www.tvebrasil.tv.br/salto/boletins2001/cms/pgm1

Aspectos históricos

Para compreender a educação do Estado no meio rural
Traços de uma trajetória*
Maria Julieta Costa Calazans**

Indicações preliminares

O ensino regular em áreas rurais teve seu surgimento no fim do 2º Império e implantou-se amplamente na primeira metade deste século. O seu desenvolvimento através da história reflete, de certo modo, as necessidades que foram surgindo em decorrência da própria evolução das estruturas socioagrárias do país.
A monocultura da cana-de-açúcar, que dominou a economia do país até a metade do século passado, prescindia de mão-de-obra especializada. No entanto, com o advento da monocultura cafeeira e o fim da escravidão, a agricultura passou a carecer de pessoal mais especializado para o setor. Outras culturas secundárias, mas de alguma importância para o setor agrícola, também tiveram um desenvolvimento crescente, decorrendo daí a necessidade de pessoal com a qualificação que se pretendia fosse dada pela escola. Desse modo, o ensino da escola elementar, como a escola técnica de 2º grau, começou a impor-se como uma forma de suprir as necessidades que se esperava fossem atendidas a partir do ensino escolar.
É essencial destacar que as classes dominantes brasileiras, especialmente as que vivem do campo, sempre demonstraram desconhecer o papel fundamental da educação para a classe trabalhadora. As revoluções agroindustriais e suas conseqüências no contexto brasileiro, principalmente a industrialização, provocaram alterações que obrigaram os detentores do poder no campo a concordar com algumas mudanças, como, por exemplo, a presença da escola em seus domínios. Assim, a escola surge no meio rural brasileiro tardia e descontínua.
Essa indicação é um fenômeno complexo e está articulada a um conjunto de relações que necessitam ser analisadas, para a compreensão do problema.
Essas breves indicações sinalizam para os aspectos centrais deste trabalho:
a) trajetória da escola pública no meio rural;
b) a produção de projetos e programas especiais, integrados no meio rural com propostas educacionais explícitas, dentre as quais destaca-se a escola formal.
As tendências da origem e da organização escolar estão intrinsecamente vinculadas aos fatos de nossa própria formação social e política: país de colonização, de trabalho fundado na escravidão e no latifúndio, por largo tempo, Colônia, Império, República. As origens filiam-se por sua vez, às idéias da educação da época trazidas da Europa, de onde procediam os colonizadores.
Alguns destaques que perpassam do século passado aos anos 30
Na trajetória da formação escolar brasileira, embora se possam destacar eventos dispersos que denotam intenções do setor público, já no século XIX, de dotar as populações do meio rural de escola, sabe-se que só a partir de 1930 ocorreram programas de escolarização considerados relevantes para as populações do campo.
O ensino técnico agrícola surgiu na Bahia, no reinado de D. João VI, transformando-se depois na primeira Escola de Agronomia do país.
A partir de 1930, consolidou-se a idéia do grupo de pioneiros do "ruralismo pedagógico", idéias em ebulição desde os anos 20, predominando:
a) "Uma escola rural típica, acomodada aos interesses e necessidades da região a que fosse destinada (...) como condição de felicidade individual e coletiva".
b) "Uma escola que impregnasse o espírito do brasileiro, antes mesmo de lhe dar a técnica do trabalho racional no amanhã dos campos, de alto e profundo sentido ruralista, capaz de lhe nortear a ação para a conquista da terra dadivosa e de seus tesouros, com a convicção de ali encontrar o enriquecimento próprio e do grupo social de que faz parte (isto em oposição à 'escola literária' que desenraizava o homem do campo)".
c) Uma escola ganhando adeptos à "vocação histórica para o ruralismo que há neste país".
Quanto aos projetos especiais ou setoriais, a documentação disponível aponta-nos algumas iniciativas nos anos 30 cujo surgimento se deu sob o patrocínio do Ministério da Agricultura, do governo Vargas. Dentro desse quadro situam-se: a)colônias agrícolas e núcleos coloniais como organismos de fomento ao cooperativismo e ao crédito agrícola (1934). "Cada um desses núcleos de colonização formará cédulas de civilização nova, com todos os recursos indispensáveis a uma vida sadia (...) novas práticas agrícolas, vivendas confortáveis, hábitos de higiene (...)"; b) o curso de aprendizado agrícola com padrões equivalentes aos de ensino elementar, regulamentado em 1934, com o objetivo de formar capatazes rurais; c) nos mesmos padrões foi criado o curso de adaptação, "destinado a dar ao trabalhador em geral uma qualificação profissional".
A multiplicidade de projetos e programas nas décadas de 40 e 50
Na década de 40 surgiram programas de destaque, tanto sob a responsabilidade do Ministério da Agricultura como do Ministério da Educação e Saúde.
A "educação rural" sob o patrocínio de programas norte-americanos tomou um grande impulso a partir do funcionamento da Comissão Brasileiro-Americana de Educação das Populações Rurais (CBAR). "O progresso na nossa agricultura depende, em grande parte, da educação do homem do campo (...). Uma obra de educação rural não pode, portanto, ficar 'adstrita' ao ensino técnico nas poucas escolas destinadas ao preparo profissional dos trabalhadores da agricultura (...)."
Originário no plano de colonização, surge, em 1945, o projeto de "aldeia rural", oferecendo possibilidades para atender às necessidades culturais, administrativas e industriais de toda a área ocupada pelo conjunto de aldeias.
Nas décadas de 40 e 50, no quadro nacional do desenvolvimento, definem-se e realizam-se programas educativos que pretenderam atingir as bases populares da maioria dos estados brasileiros.
Em 1947, o governo iniciou um movimento de educação popular denominado "Campanha de Educação de Adultos". Procurava-se com isso, criar ambiente propício às providências educativas de maior profundidade, entre as quais deveria figurar a experiência de "Missões Rurais de Educação de Adultos".
A idéia que fundamenta a prática de "Missões Rurais" é a de ação educativa integral para soerguimento geral das condições de vida material e social de pequenas comunidades rurais (as CSRs). A primeira Missão Rural de Educação, no entanto, só começou a funcionar em 1950, no município fluminense de Itaperuna.
Na década de 40 ainda estavam em vigência em algumas regiões do país as idéias do "ruralismo pedagógico", que data de antes dos anos 20, como uma tentativa de resposta à "questão social", provocada pela inchação das cidades e incapacidade de absorção de toda a mão-de-obra disponível pelo mercado de trabalho urbano. A essa ameaça permanente, sentida pelos grupos dominantes, políticos e educadores tentavam responder com uma educação que levasse o homem do campo a compreender o "sentido rural da civilização brasileira" e a reforçar os seus valores, a fim de fixá-lo à terra, o que acarretaria a necessidade de adaptar programas e currículos ao meio físico e à cultura rural.
O ardor com que se defende, ao longo do tempo, a causa da educação rural deu origem a providências concretas e de grande alcance, ora por parte do poder central, ora por parte de educadores, particularmente os "profissionais da educação". Já não se tratava de um movimento alfabetizador, mas de uma nova concepção da expansão escolar, em que o rural e o agrícola fossem respeitados nas suas características fundamentais e nas suas necessidades específicas.
A importância de que se revestiu a discussão do problema da educação rural para os "profissionais da educação" levou-os a organizar e realizar, em 1942, um congresso nacional de educação, na busca de diretrizes e soluções: O Oitavo Congresso Brasileiro de Educação, sob o patrocínio do governo federal e do governo de Goiás.
O exame dos Anais desse Congresso permite perceber o predomínio que tiveram, ao longo das exposições, estudos e debates, as principais idéias do "ruralismo pedagógico": a substituição da "escola desintegradora, fator do êxodo das populações rurais", por uma escola cujo objetivo essencial fosse o "ajustamento do indivíduo ao meio rural" - caracteristicamente a escola do trabalho - cuja função fosse "agir sobre a criança, o jovem, o adulto, integrando-os todos na obra de construção da unidade nacional, para tranqüilidade, segurança e bem-estar do povo brasileiro".
A educação no meio rural no final dos anos 40 e década de 50 (1950) reflete, sem dúvida, a "tomada de consciência educacional" expressa no Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, redigido em 1932 por Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Carneiro Leão e outros.
A educação na escola e nos projetos integrados ou especiais nas décadas de 60 e 70
Ao final da década de 60, o "agravamento das disparidades regionais entre o Nordeste e o Centro-Sul (regiões mais povoadas do País", a identificação da densidade do problema, segundo o qual o setor primário, na região, seria o ponto de maior entrave para a absorção da "vigência de uma estrutura de poder ( principalmente no caso da Zona da Mata ) e de um regime semifeudal da propriedade e do uso da terra" foram, entre outros, os pontos de partida para a criação do primeiro órgão do planejamento e desenvolvimento regional brasileiro.
Ao lado disso, depois de 1960, os Estados Unidos passavam a se interessar prioritariamente por desenvolver programas de ajuda financeira e assistência técnica na América Latina.
No primeiro plano da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste - Sudene - não se toca em projetos educacionais. No segundo plano, 6% do investimentos destinavam-se ao desenvolvimento de recursos humanos mediante treinamentos vocacional agrícola e industrial, preparo de pessoal para os estados e os municípios e programas universitários e pré-universitários.
Antes da criação da Sudene, o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) fez um diagnóstico no qual estão sugeridas três linhas de ação - os denominados Projetos Integrados - para o setor agrícola: a) utilização para irrigação, com o objetivo de estabilizar a produção de alimentos no sertão; b) colonização das áreas úmidas do Maranhão; c) uma melhor utilização da terra na área fértil e bem servida de chuvas da Zona da Mata.
Segundo Dirceu Pessoa, "os projetos integrados são empreendimentos envolvendo diversos setores e, como tal, objeto de atividades multiprofissionais interdependentes que deverão ser conduzidas integradamente".
Com relação à educação, nessa conjuntura, pode-se dizer, genericamente, que ela é planejada, estruturada e realizada a partir das "necessidades educacionais de cada região". Não há uma superestrutura válida para todo e qualquer meio ambiente. As exigências de planejamento e efetivação da educação rural estão correlacionadas à política do desenvolvimento e à transformação das estruturas do setor primário. O modelo de desenvolvimento é uma variável que interfere no estabelecimento de diretrizes e políticas para a educação rural, afirmavam os planejadores de educação e recursos humanos da época.
Na Região Nordeste, na década de 60, foram implantados alguns programas e projetos integrados em áreas rurais, através dos quais agências governamentais atuantes na região procuraram desenvolver ações educacionais de forma a melhor atingir as populações -Povoamento do Maranhão (1961); Grupo de Estudos do Vale do Jaguaribe (1961); Grupo de Imigração do São Francisco (1960).
A tônica desses e de outros programas era o desenvolvimento de comunidade e educação de adultos, considerada, esta última, como um processo contínuo integrado ao desenvolvimento, devendo imprimir as seguintes características:
1. Conscientização da população de modo a permitir ao educando uma participação responsável e produtiva mediante:
a) interpretação dinâmica dos nossos valores e hábitos, bem como reintegração dos valores tradicionais referentes à vida pessoal e coletiva;
b) estímulo à participação na vida política do país.
2. Capacitação para assumir as novas formas correlatas de trabalho, bem como situações mais complexas de organizações coletivas.
Na Região Sul, diversos projetos integrados foram executados pela Superintendência da Região Sul (Sudesul), dentre os quais vale assinalar: o projeto integrado Sudoeste - I, situado na zona sudoeste do Rio Grande do Sul, integrada por 19 municípios, incorpora atividades educacionais destinadas às populações atingidas pelo mesmo.
As atividades educacionais desenvolvidas pela Sudesul, no âmbito dos projetos citados, emanam das diretrizes do Plano Setorial de Educação e visam à coordenação e à vinculação dos diversos organismos responsáveis por sua execução, na respectiva área.
Em âmbito nacional, as décadas de 60 e 70 foram de proliferação assustadora de programas para o meio rural. Estamos nos propondo mapear os principais, fazendo breves indicações a respeito dos mesmos.
Nos setores de colonização e reforma agrária, tivemos a Supra (Superintendência da Política de Reforma Agrária), em 1962; o Ibra (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária ) e o Inda ( Instituto Nacional do Desenvolvimento Agrário ), criados com a extinção da Supra, em 1964; e o Incra ( Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ), que emerge no final da década de 60 da fusão do Ibra e do Inda. Embora as orientações teórico-metodológicas das propostas educativas desses órgãos tenham sido diferentes - dadas as condições estruturais e conjunturais de cada época perpassada pelos mesmos -, a tônica de trabalho que empreenderam é pautada no desenvolvimento de comunidade, e na educação popular e de adultos - sob a forma organizativa de projetos rurais integrados.
Outros programas que devem ser assinalados:
a) Pipmoa - Programa Intensivo de Preparação de Mão-de-Obra Agrícola (1963), fundido com o Pipmoa em 1972;
b) Prodac (Programa Diversificado de Ação Comunitária), do Mobral, com incursão permanente no meio rural;
c) Senar - Serviço Nacional de Formação Profissional Rural (1976);
d) Crutac - Centro Rural Universitário de Treinamento e de Ação Comunitária (1965) e Cimcrutac (1969);
e) Projeto Rondon (1968);
f) No II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) - com recursos do Bird; Pólo Nordeste, Pólo Amazônia e Pólo Centro, todos com incursões em educação e treinamento de mão-de-obra.
No Ministério de Educação e Cultura, o II Plano Setorial de Educação (1975-79) estabeleceu, entre seus objetivos e diretrizes, criar condições para o desenvolvimento de programas de educação no meio rural que venham a repercutir na melhoria socioeconômica das populações dessas áreas.
A Secretaria Geral do MEC, com a participação do CNRH / Seplan e PNDU / Unesco - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - realizou cursos de formação para educadores do meio rural, tendo lugar, o primeiro desses cursos, em Natal, com desdobramento em Caiacó-RN, onde foi iniciada a aplicação da metodologia que o programa adotou.
Desde 1976 trabalhando, técnicos do MEC, CNRH/Seplan e PNUD/Unesco promoveram, além do projeto no Rio Grande do Norte, um curso em Garanhuns - PE, encontros, seminários e uma reunião técnica sobre Metodologia de Planejamento da Educação para o Desenvolvimento Integrado das Áreas Rurais, com a participação de outras instituições congêneres latino-americanas e técnicas de programas internacionais.
Várias reuniões técnicas foram realizadas em função da implementação desse programa, produzindo vasta documentação, especialmente referida aos aspectos metodológicos.
Os estudos indicam que a educação no meio rural deveria estimular:
a) aquisição de conhecimento que possibilite ao indivíduo e à comunidade a compreensão do meio em que vivem e os instrumentalize para encontrar a melhor solução para as situações que impedem ou dificultam o seu desenvolvimento;
b) aquisição de conhecimentos que leva a um aumento da produtividade e, em conseqüência, a uma melhoria das condições de vida;
c) participação da comunidade no desenvolvimento, na transformação ou adaptação de estruturas de natureza econômica e social, tais como: cooperativas, escolas, programas, pelotões de saúde etc.
No III PSECD (Plano de Educação, Cultura e Desporto), do Ministério de Educação e Cultura - 1980, cujo enfoque atribui à educação um importante papel na política social, surge o Pronasec, entendido como um dos elementos significativos na luta contra a pobreza.
O tipo de serviço educacional proposto seria apoiado nas características e necessidades da população carente e incorporaria o universo cultural da comunidade em que se insere.
A proposta educativa desdobra-se em: educação e trabalho produtivo, educação e vida comunitária, educação e cultura.
Cabe dar ênfase às propostas educativas dos primeiros cinco anos da década de 60. Movimentos educacionais e culturais relevantes como o MEB, o método de Paulo Freire, entre outros , desenvolveram inovadoras concepções e estratégias de educação de adultos, educação de base e educação popular, e destacaram-se pela criatividade e inovação teórico-metodológica.
É importante salientar que a vinculação que se estabeleceu entre educação e desenvolvimento a partir dessa época pôs fim à oposição cidade-campo, alvo principal da luta ideológica do "ruralismo pedagógico".
Daremos destaque, a seguir, a alguns pontos de discussão em torno das concepções que nortearam os programas no meio rural nas décadas de 60 e 70.
"Educação, que se propõe a ser fator de desenvolvimento, e que, de forma programada, inclui-se numa planificação global, tem de estar atenta às solicitações feitas pelas estruturações específicas já implantadas, equipando-se para uma capacitação específica de quadros; e também voltada para a criação de uma mentalidade tecnológica (não confundir com a preparação das massas para a tecnocracia) condizente com a atualização do homem no que diz respeito às relações da economia moderna."
Pretendia-se tipificar uma "educação para o desenvolvimento", tomar posição em relação à educação de adultos na perspectiva de educação de base, propor que a educação de adultos não se limite a um mero "alfabetizar por alfabetizar". Objetivava-se preparar os indivíduos e os grupos para participarem, responsável e produtivamente, de um processo de mudança cultural identificado como um processo de desenvolvimento socioeconômico.
Tomava-se como conceito de desenvolvimento um processo de mudança cultural para um "melhor estar das comunidades humanas no decurso do tempo". "O conceito de melhor estar se aplicava (...) a uma mudança do ponto de vista cultural, no comportamento dos consumidores; e do ponto de vista econômico, a uma variação na função-consumo. Mas, a cada nível de melhor estar deve corresponder uma mudança na função-produção."
Damasceno (coords.). Educação e Escola no campo. Campinas, Papirus, 1993.
Quanto à continuidade do mapeamento, inventário, ou estado da arte dos projetos e programas da área em estudo, a partir de 1980, a autora sugere que sejam consultados os resultados do grupo de trabalho "Educação e Movimentos Nessa perspectiva, o processo de desenvolvimento só pode ser entendido quando considerado em relação ao homem. É ele o agente da criação e mobilização de todos os eventuais fatores implicados no processo. Daí a necessidade de capacitar o homem para assumir esse papel de agente propulsor do desenvolvimento, além de a própria razão de ser do desenvolvimento ser a realização do homem e o aumento do seu bem-estar.
O papel da educação seria, pois, o de "propor elementos para que o homem, ao invés de subordinar-se, ingresse nesse mundo inovado e consiga situar-se nele como no seu mundo, e definir o papel que nele lhe compete". Isso exigiria a descoberta de novas categorias "que lhe permitirão uma nova compreensão de si mesmo, do seu mundo de relações e das coisas".
Essa proposta de uma educação para o desenvolvimento e para o trabalho, preparando a população para o "ingresso consciente" no processo político, através de suas organizações, não gerou consenso - nem nas discussões acadêmicas em seminários e grupos de trabalho, e muito menos no estabelecimento de estratégias para as ações programadas. Os defensores da educação como investimento estavam presentes a esses debates, sobretudo na defesa das organizações externas que chegavam ao Brasil para suas prestações de assistência técnica.

Considerações finais

A intenção do estudo da Prof.a Maria Julieta Costa Calazans é oferecer uma indicação de programas e projetos governamentais de ações educativas que perpassaram momentos históricos da realidade brasileira e neles deixaram suas marcas, registrando um mapeamento das ações "educativas e culturais" (programas e projetos) no âmbito da educação e das escolas rurais. Apresentamos aqui um resumo dos pontos principais deste estudo, que pode ser conhecido na íntegra em:
CALAZANS, Maria Julieta Costa. "Para compreender a educação do Estado no meio rural - traços de uma trajetória". In: Jacques Therrien e Maria Nobre Sociais no Campo", da ANPEd.

NOTAS:
* Este trabalho foi elaborado com base em informações armazenadas principalmente nos relatórios do Estudo Retrospectivo da Educação Rural no Brasil 1975-1983, coordenado pela autora, com a participação de outros docentes do Instituto de Estudos Avançados em Educação Iesae/FGV.
** Professora no Instituto de Estudos Avançados em Educação Iesae/FGV e no mestrado em Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).


Ensino rural hoje

Que projeto de Educação Rural?
Fernando Pimenta*

A junção das palavras educação e rural confundem e intrigam as cabeças bem pensantes da área da educação. A educação pensada nos marcos da universalidade e cidadania - como valores ideais - é fortemente influenciada pelo viés desenvolvimentista industrial e urbano, tão valorizado nas décadas de 60 e 70, período em que boa parte de nossos educadores freqüentaram os bancos escolares. A palavra rural sofre distorção provocada também pelo paradigma industrial. O rural é associado a atraso, baixa densidade demográfica, pobreza e isolamento. Embora essas características ocorram com freqüência, isoladamente ou associadas, no geral existe o preconceito que associa rural a um valor negativo. O rural nessa visão tradicional é entendido unicamente como o território agrícola das propriedades rurais.
A dificuldade de se discutir um projeto de educação rural se inicia com esse enfoque conservador. Torna-se necessário rediscutir a nova territorialidade do rural; atualizar as percepções de local, regional e global (e suas inter-relações) e finalmente, discutir objetivos e parâmetros para a cidadania no mundo rural.

A nova territorialidade rural

No conceito tradicional, rural e agrícola são sinônimos. Afinal, a área rural tradicionalmente era voltada exclusivamente às atividades agrícolas. Na verdade, até o final dos anos 60 tínhamos uma enorme participação da agricultura de subsistência na produção de alimentos. Esse setor era essencialmente formado pelos agricultores familiares bastante auto-suficientes no seu consumo e, portanto, isolados da economia de mercado. A situação atual é bem diferente, em que se pese as grandes diferenças regionais do país. A agricultura familiar atualmente está muito mais integrada ao mercado. Ela produz 38% do valor da produção, ocupa 77% das pessoas que trabalham no campo e possuem 30% das áreas dos imóveis rurais. Hoje, sua renda não é mais exclusivamente agrícola. Estima-se que cerca de 35% da renda familiar dessa população vem de atividades não-agrícolas desenvolvidas na zona rural ou nas sedes dos municípios. Os agricultores familiares também não moram mais exclusivamente na zona rural, como ocorria há 30 ou 40 anos atrás. Em 14 unidades da Federação, mais de 20% moram nas sedes dos municípios; em 7 estados mais de 30% dos agricultores familiares estão nas cidades. Essas tendências são constatadas mundialmente.
O que queremos destacar é que cada vez mais há uma independência entre as atividades econômicas e o local das residências. Tanto encontramos pessoas da zona rural com atividades não-agrícolas, como gente nas cidades vivendo de atividades agrícolas e rurais. Cada vez aumenta mais a integração e a divisão do trabalho entre o campo e os núcleos urbanos. Na verdade existem municípios rurais em que a economia gira ao redor de atividades agrícolas e não-agrícolas desenvolvidas nas áreas rurais e urbanas. O pesquisador José Eli da Veiga, da USP, analisando os dados do Censo de 2000, estimou que no país existem 4.490 municípios rurais, onde vivem 52 milhões de brasileiros. É para essa população & território que pensamos um projeto de educação rural.

As percepções de local, regional e global

O progresso das comunicações possibilitando a democratização das informações; a extraordinária melhoria da infra-estrutura viária e a enorme ampliação da escolarização no país, aliados a uma tendência mundial de integração das economias dos países, criaram uma forte interdependência entre a territorialidade do local, do regional (incluindo aqui o nacional) e do global nem sempre acompanhadas pela percepção das pessoas. Não estamos falando (nem acreditamos) no fim da diversidade das culturas e valores locais, do esvaziamento do papel da vida comunitária na socialização das pessoas, nem fortalecendo o discurso tecnocrático da padronização global. O que precisamos é entender as novas relações entre local, regional e global e a natureza dos laços de dependência e independência.
A territorialidade rural ( no sentido econômico e das relações sociais de produção) é decorrente essencialmente da relação entre o desenvolvimento técnico de sua sociedade na exploração dos seus recursos naturais, num determinado período histórico. Essa relação determinará em grande parte as características da integração do local com o regional e o global. Torna-se necessário, portanto, analisar as diferentes dimensões da territorialidade através do conhecimento, para que as pessoas do território rural percebam sua inserção na região, no país e no mundo. Através de algumas afirmacões e indagações sobre a produção de alimentos e o meio ambiente, tentarei tornar mais compreensível as interdependências das diferentes dimensões territoriais.
Os consumidores das cidades estão cada vez mais exigentes em produtos com determinadas características de produção, origem, embalagem, aparência etc. Em geral se dispõem a pagar mais por esses produtos. Os pequenos produtores, por sua vez, precisam vender produtos de maior valor para aumentarem sua renda e qualidade de vida. Como articular a produção especializada e qualificada dos pequenos produtores com as demandas exigentes da população das grandes cidades?
Os consumidores das cidades querem produtos com melhor qualidade e preços competitivos. Ocorre que para viabilizar competitividade se exige, além da qualidade anteriormente falada, de regularidade e volumes adequados na oferta de produtos. Na maior parte das vezes a produção de um ou alguns produtores é insuficiente para ter sucesso no mercado. É preciso organizar vários produtores e de forma planejada. Isso exige articulação no nível municipal e regional da produção. É necessário também conhecer as outras regiões produtoras com quem se concorrerá ou até mesmo poderá se construir parcerias para fortalecer a entrada conjunta no mercado. Como os diferentes processos de educação ( e capacitação) podem aumentar os conhecimentos e a capacidade de associações dos pequenos para que eles participem "grandes" no mercado?
O mundo através de diferentes movimentos sociais está cada vez mais exigindo que o desenvolvimento seja sustentável, isto é, que não comprometa o meio ambiente para as gerações futuras. O combate à pobreza e à desigualdade e o desenvolvimento econômico ambientalmente correto são os temas mais discutidos pelos países nas conferências e fóruns internacionais. A falta d'água para abastecimento e geração de energia, a elevação da temperatura da Terra pelo excesso de poluentes que estão destruindo a camada de ozônio que nos protege, o excesso de gás carbônico pela devastação das matas são resultados da exploração irracional de diferentes cadeias produtivas. O território rural não deveria ter um papel de destaque na preservação da água, do solo e das matas? Para isso não precisaria, além de uma forte educação ambiental, ter um planejamento territorial no nível das comunidades locais (microbacias) e no nível regional (bacias)? O país não precisaria implementar mais rapidamente um zoneamento agroecológico? E as cidades, o que poderiam fazer para devolver água limpa aos rios que por elas passam e retornam geralmente para o território rural?

A cidadania e o novo mundo rural

A cidadania no novo mundo rural se baseia nos princípios do reconhecimento da diversidade sociocultural e no direito à igualdade e à diferença previsto na Constituição Brasileira. Assim, ao reconhecermos uma territorialidade própria para o rural, pensamos um projeto integrado ao nacional, mas com características locais e regionais diferenciadas. Ao pensarmos em educação rural estaremos desenvolvendo adequações nos conteúdos curriculares e metodologias baseadas nas diretrizes e parâmetros curriculares nacionais definidos para a educação básica. Por tratar-se de um projeto de longo prazo, acho que deveríamos desenvolver uma agenda pensando na formação e educação de nossos jovens rurais.
Estudos feitos com jovens rurais do sul do país mostram que 70% dos rapazes desejam ficar no campo como produtores rurais. Apontam as seguintes dificuldades: 81% falta de recursos para investimento; 40% falta de alternativas de geração de renda e 30% falta de terra (só 21% acham que herdarão terras em quantidade e qualidades necessárias).
Essas constatações sugerem três pontos para discussão da agenda: 1o - as políticas de crédito rural para investimento deveriam priorizar jovens da agricultura familiar com formação profissional que apresentassem projetos viáveis; 2o - os currículos da educação básica e profissional deveriam desde cedo desenvolver a formação e capacitação empreendedora de nossos jovens rurais, já que as possibilidades de emprego são remotas nos pequenos municípios brasileiros. O empreendedorismo também precisaria ser desenvolvido para atividades não-agrícolas e em novas vocações e oportunidades oferecidas pelo meio rural; 3o - o acesso a terra deveria tornar-se uma política universal a todo jovem rural que desejasse ficar no campo e que se tivesse profissionalizado para tal. Dessa forma, a reforma agrária e o crédito fundiário seriam priorizados para esses jovens.
Pelo mesmo estudo cerca de 50% das moças pretendem continuar no meio rural como proprietárias; ou trabalhando em tempo parcial ou trabalhando em atividades não-agrícolas. Pensam que não terão condições de optar: as mais pobres acham que ficarão no campo por necessidade ou que terão que procurar emprego nas cidades, embora nesse caso quisessem ficar no meio rural. Assim teríamos: 4o - para as jovens do gênero feminino ( além dos três pontos anteriores) precisaríamos uma educação e formação mais voltadas à capacitação para o desenvolvimento profissional de tempo parcial, em que haverão trabalhos desenvolvidos no campo e na cidade e em que os trabalhos rurais poderão ser diferentes daqueles realizados pelos rapazes.
A falta de oportunidades de educação em quantidade e qualidade no meio rural tem sido responsável por dois aspectos perversos: os jovens mais capacitados saem do meio rural embora desejassem ficar; os que ficam não estudam o suficiente para desenvolverem capacidades empreendedoras que lhes dêem renda. Felizmente, pelo menos no campo do atendimento escolar, esse quadro está mudando (Estudo da EPAGRI/SC em dez municípios do oeste catarinense constatou que cerca de 60% dos jovens entre 25 e 29 anos estudaram até a quarta série, contra cerca de 40% entre os de 19 a 24 anos e 20% entre os de 13 a 19 anos).
O número limitado de anos de estudo dificulta a formação da cidadania, que exige formação e conhecimento dos direitos e deveres de cada um de nós. Também impede que o jovem conheça sua própria cultura e a diferencie das demais. A ampliação do período escolar também favorece a criatividade, a análise crítica, a cultura associativa e a solidariedade, tão necessárias para as comunidades rurais e para o desenvolvimento da agricultura familiar. Definir como meta de estudo pelo menos a conclusão do Ensino Médio e uma formação profissional mínima de dois anos, além de uma cultura de educação permanente e continuada, são necessidades fundamentais para a construção de um projeto de desenvolvimento rural sustentável. Poderíamos considerar estas necessidades como nosso 5o ponto da agenda.
A qualidade do ensino também precisa melhorar. Algumas experiências poderiam ser universalizadas e adotadas nesse sentido. O projeto Escola Ativa tem conseguido bons resultados nas escolas multisseriadas da 1a a 4a série; o transporte escolar nos municípios tem possibilitado a continuidade dos estudos dos jovens rurais, embora devêssemos rediscutir a nucleação dos alunos da zona rural; iniciam-se experiências de estudo a distância associado a aulas presenciais com periodicidade mensal para o Ensino Médio; aos poucos vão aumentando as experiências de contextualização da realidade rural nos currículos e no calendário escolar; as escolas profissionalizantes, baseadas na pedagogia da alternância e administradas pelos próprios agricultores, vêm mostrando como é possível trabalhar na profissionalização dos jovens rurais sem afastá-los da produção e do convívio familiar e rural; a educação a distância vem se mostrando um forte instrumento para capacitação de professores e alunos e um jeito barato e agradável de se conhecer experiências de outros lugares. A adequação e multiplicação dessas experiências poderiam se constituir no 6o ponto de nossa agenda.
Finalmente é preciso aproximar as oportunidades de qualidade de vida do meio rural às do meio urbano. Políticas públicas de democratização dos meios de comunicação (televisão, rádio, computação, telefonia); melhoria das estradas e oferta de transporte rural; lazer e esporte etc. precisam aproximar mais a qualidade de vida e o convívio dos jovens dentro do mesmo município. Que tal pensarmos nisso como o 7o item da agenda?

O Projeto político-pedagógico

O que abordamos e diagnosticamos até aqui não são grandes novidades acadêmicas e muito do que falamos já vem acontecendo em diferentes regiões. O que falta é um projeto claro, que estabeleça uma política universal de educação rural vinculada ao desenvolvimento local e regional do interior e dos pequenos municípios que integram o meio rural brasileiro.
O projeto político-pedagógico deveria trabalhar com três princípios:
1o) Fortalecer a auto-estima da população rural e dos pequenos municípios através da possibilidade de implementação de um projeto de desenvolvimento baseado nas vocações locais, na equanimidade de oportunidades e na valorização da cultura local;
2o) Estabelecer a "cidadania-diferente", na qual a escolha do local, o estilo de vida, os valores sociais com que cada um se identifica e se realiza trazem a felicidade e tornam eventuais limitações materiais e de consumo pouco importantes na opção de vida;
3o) Construir a utopia do novo mundo rural baseada no paradigma do desenvolvimento local sustentável integrado à divisão regional do trabalho e ao projeto de desenvolvimento do país e do mundo dentro dos novos valores globais e universais que vão se consolidando - apesar de as contradições mundiais persistirem - como a ética, a inclusão, a equanimidade, respeitadas as diferenças, a solidariedade e o direito de todos à felicidade.
NOTAS:
* Representante do MEC no Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável.

Municipalização

Descentralização do Sistema
Sergio Celani Leite *

Para muitos, descentralização de ensino implica somente a autonomia administrativa, pedagógica e financeira das unidades escolares, mas ela estende seu conceito de forma bem abrangente, quando propõe uma discussão ampla sobre o papel do corpo docente/discente e das famílias dentro da estruturação e reorganização do sistema escolar, visando exclusivamente ao seu fortalecimento. Neste sentido esclarece Guiomar Namo:
"(...)a descentralização aqui proposta, que terá como objetivo último o fortalecimento da organização escolar e sua maior autonomia, constituirá num processo de redefinição do papel das instâncias centralizadas do aparato estatal e de políticas pactuadas com instâncias intermediárias" (Mello: 1991: 30).
Portanto, a questão da descentralização não se dá apenas pela autonomia pura e simples, mas pela forma de gestão que se pretende empreender no sistema escolar, ampliando-se cada vez mais o nível de responsabilidades dos participantes diretos do processo: professores, alunos, famílias, comunidades etc. Gestão e descentralização estão ligadas intimamente, uma vez que o gerenciamento escolar esteja conectado com a realidade que envolve a própria escola, e a filosofia da educação tenha autonomia suficiente para permitir uma gestão aberta e diferenciada.
Rapidamente, podemos colocar vários itens que emperram as formas descentralizadas de gerenciamento escolar, entre eles: centralismo organizacional; estruturação curricular não abrangente; planejamento didático e processo de ensino realizados a partir de orientações superiores; excesso de burocratização no gerenciamento e funcionamento do sistema; distribuição desigual de recursos humanos, ao longo dos anos de escolaridade; superposição de interesses alheios à escola sobre decisões puramente educacionais, isto é, interferência de pessoas, grupos e/ou interesses alheios na educação; inadequação de recursos financeiros ou gastos infinitamente distanciados das reais necessidades educacionais; incapacidade do governo e dos homens públicos em viabilizarem uma política educacional que atenda à sociedade; processo descontínuo e desigual no tratamento do sistema escolar e ações que dão privilégios ora às necessidades do 1º grau, ora do 2º grau etc.
A função primordial da escola é ensinar, transmitir valores e traços da história e da cultura de uma sociedade. A função da escola é permitir que o aluno tenha visões diferenciadas de mundo e de vida, de trabalho e de produção, de novas interpretações de realidade, sem, contudo perder aquilo que lhe é próprio, aquilo que lhe é identificador.
No entanto, o sistema em si, centralizado no poder de alguns e objetivando a manutenção de uma democracia fictícia, não permite que essa função seja de fato realizada. Gestão, função e organização escolar, aliadas à prática pedagógica, devem ter esse direcionamento, ensino/aprendizagem, pelos quais se concretiza a ação educadora de fato. Guiomar Namo de Mello, em seu texto sobre Política Educacional Brasileira (Políticas Públicas de Educação. Revista de Estudos Avançados, São Paulo, 5 (13):7-47), assim coloca essa problemática:
"O eixo central da Organização da escola é, assim, o processo de ensino e aprendizagem. Funções de outra natureza podem ser assumidas pela instituição escolar, por imposição de contingências históricas e sociais, mas elas devem estar subordinadas à sua tarefa fundamental que é a gestão da relação pedagógica pela qual o ensino e a aprendizagem se efetuam (Mello,1991:24).
Neste caso, o papel do poder público no que diz respeito à educação é fundamental, levando-se em consideração a tipologia e estruturação do Estado Nacional e do sistema produtivo capitalista, que determinam as relações políticas e de mercado e emolduram as relações socioculturais.
Sabemos que o contigente escolar brasileiro concentra-se, primordialmente no ensino básico e que há uma dicotomia constante entre Estado, Capital e Escola. A multiplicidade sociocultural e as diferentes estruturações e legitimações políticas fazem da escola, na maioria das vezes, uma espécie de "filho pródigo" em busca de sua própria identidade. Nessa condição, a função básica da escola despenca-se em um emaranhado de situações conflitivas com a realidade local, em que a qualidade do que se ensina e do que se aprende perde seu significado. Por outro lado, as demandas de mercado exigem uma tecnologia e estudos avançados em relação aos conhecimentos básicos, necessários à vida comunitária, promovendo na maioria das vezes uma ruptura entre as práxis locais e adestramento profissional.
Em decorrência dessas contingências, aponta-se a municipalização do Ensino Fundamental, como formato de gerenciamento do processo escolar, com o objetivo de adequar o ensino/aprendizagem às múltiplas realidades que circundam a escola, sem perder de vista seu objetivo formal (transmissão de conhecimentos) e atingindo níveis superiores de qualidade, eficiência e aplicabilidade. Sob esse aspecto:
"(...)entendida como socialização do poder decisório e de gestão, com os diversos setores do poder local, resultando em políticas ditadas pela maioria ou por consensos possíveis, a municipalização do Ensino Fundamental permitirá a conciliação entre as exigências da cidadania universalizada e as do desenvolvimento econômico" (José Eustáquio Romão. Poder local e educação. São Paulo, Cortez, 1992).
A partir dessas considerações, o conceito de descentralização atinge os municípios, e em meio a essas colocações e posicionamentos - quer educacionais, políticas ou socioculturais - encontramos divergências entre os pensadores da educação, no que diz respeito à participação municipal como elemento de sustentação essencial na autonomia descentralizada do sistema escolar. É significativa, nesse parecer, a observação de Moacir Gadotti, afirmando que:
"(...)a municipalização só será democrática e consolidará o processo de democratização na medida em que ela for articulada com as diferentes esferas de governo, como está escrito na Constituição, que prevê o 'regime de colaboração' entre os sistemas de ensino (...) Há uma grande diferença entre municipalização e prefeiturização. A ampliação das responsabilidades dos municípios em matéria de educação constitui-se num passo importante para a descentralização" (Moacir Gadotti. In: José Eustáquio Romão. Poder local e educação. São Paulo, Cortez, 1992).
Com efeito, a capacidade formativa e informativa de planejamentos e de estruturação da rede escolar, a cargo da municipalidade, reverte o processo às suas bases, à práxis local, sem contudo perder o fio condutor que integra o município ao estado e à federação. Esse fio condutor nada mais é que a vontade política para efetivar, pela escolaridade, a vivência democrática e produtiva do cidadão, tendo em vista o princípio de igualdade, de equilíbrio social e dos valores socioculturais.
Os defensores da descentralização percebem na redistribuição tributária uma forte possibilidade de se garantir o custo operacional do processo escolar. Na forma de socialização de recursos que o capitalismo moderno propicia, acreditam eles no gerenciamento local para a aplicação adequada desse quantum financeiro, de modo objetivo e corretamente direcionado, a partir e em função da gestão democrática permitida pela descentralização. Objetivam, especificamente nesse caso, o atendimento ao ensino fundamental municipal.
No jogo dessas discussões, grupos municipalistas se movimentaram criando, juridicamente, uma entidade específica para atender a suas reivindicações. Como porta-voz da defesa da descentralização escolar, temos também grupos de educadores e estudiosos, que num trabalho reflexivo e epistemológico da educação, tentam distanciar as discussões corporativas (municípios e entidades municipalistas em oposição a educadores e autoridades educacionais estaduais) que eventualmente se manifestam sobre esta ou aquela tendência.
Lastreadas na democracia e no direito, as discussões sobre descentralização e gestão autônoma da educação vêm tomando corpo, dia a dia, na formulação das novas propostas educacionais. Face às necessidades do ensino nacional, principalmente, em relação à nova LDB, podemos garantir que a descentralização antes de ser uma necessidade é, basicamente, uma conduta pedagógica a ser estabelecida. Resta saber em que bases, e a partir de quais objetivos, essa escola descentralizada e autônoma deseja atuar.

NOTAS:
* Para compreender a municipalização das escolas rurais e qual é o impacto da municipalização das escolas, apresentamos o texto de Sergio Celani Leite, coordenador do projeto de pesquisa em História da Educação, em convênio pela UEMG/FAPEMIG, nas regiões de Alto Paranaíba e Noroeste Mineiro.

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